Fernando Reinach, ao Estadão, comenta sobre o ingresso de cotistas no ensino superior. Sábias palavras, principalmente quando aborda o desafio do Professor frente a novos desafios de "agrupar" alunos tão díspares sa sua formação (os grifos são meus):
Todo professor responsável enfrenta o desafio de lidar com a diversidade dos
alunos. Parte da diversidade resulta de diferenças na motivação deles. Enquanto
alguns chegam famintos por novos conhecimentos, outros preferiam estar longe da
sala de aula.
Mas também existe a diversidade dos conhecimentos na mente de cada aluno.
Enquanto alguns sabem o suficiente para compreender o conteúdo da aula, outros
têm dificuldade ou ainda são incapazes de acompanhar a matéria. Claro que essas
duas categorias se entrelaçam. Muitos alunos perdem a motivação por estarem
despreparados para acompanhar a aula, outros a perdem pelo fato de a aula não
ser suficientemente desafiadora e instigante.
O dilema é sempre o mesmo. Ao puxar o ritmo do aprendizado, o professor
motiva os preparados, mas aliena os retardatários. Se optar por ajudar os
retardatários, perde o interesse dos mais adiantados.
Desde o surgimento da escola na sua forma atual, em que muitos alunos são
ensinados por um professor, o problema da heterogeneidade das classes tira o
sono de docentes dedicados. Esse problema está na origem do ensino seriado, em
que alunos da mesma idade e conhecimento são agrupados em uma sala de aula e sua
promoção para a próxima série depende do cumprimento de certas metas.
Esse mecanismo, que garante um mínimo de homogeneidade, é a mãe dos exames de
avaliação, da temida reprovação e das aulas de recuperação, talvez o melhor
mecanismo para reduzir a diversidade. Nas cortes europeias, em que os jovens
príncipes eram educados individualmente por tutores, esse problema não existia.
Mas, assim que o ensino formal foi massificado, mecanismos capazes de organizar
alunos em grupos relativamente homogêneos foram desenvolvidos. O custo de
desrespeitar essa regra básica é um aproveitamento menor dos alunos e uma
diminuição na eficiência e velocidade do ensino.
Aprovação automática. Há alguns anos foi introduzida no
Brasil a aprovação automática dos alunos, independentemente do conhecimento
adquirido. Além de ser uma maneira barata e simplista de isentar o sistema
educacional da responsabilidade de dar aulas de reforço e acompanhamento, essa
medida aumenta a heterogeneidade das classes, dificulta o trabalho dos
professores e diminui a eficiência do ensino. Nossos professores agora têm de
motivar, durante uma mesma aula, alunos preparados e despreparados. Mas ninguém
reclamou muito. Professores e diretores se livraram da meta básica de todo
educador: fazer a maioria de seus alunos aprender, de maneira estimulante, o
currículo de cada série. O governo pode mostrar estatísticas de aprovação róseas
e os pais se livraram da frustração de ter seus filhos reprovados. O resultado é
que a pressão por um sistema educacional melhor foi aliviada.
Agora uma nova lei promete aumentar a heterogeneidade entre os alunos das
universidades federais. É o sistema de cotas para alunos que estudaram em
escolas púbicas. Não há dúvida de que é injusto que toda a população pague pela
manutenção das universidades federais e somente os mais ricos, vindos de escolas
privadas, ingressem nessas instituições. A questão é saber se as cotas são a
melhor solução para essa distorção.
Com o novo sistema de cotas, 50% das vagas nas universidades federais serão
disputadas por todos os alunos. O restante será disputado por alunos de escolas
públicas. Esse novo sistema vai gerar dois grupos de alunos em todas as classes,
em cada um dos cursos de todas as universidades federais.
Quão diferentes serão esses grupos? Se os melhores alunos da escola pública
tivessem preparo semelhante ao dos melhores alunos das escolas privadas, a nova
lei seria desnecessária. O alunos da escola pública já ocupariam hoje mais de
50% das vagas. Mas esse não é o caso e metade das vagas será ocupada por alunos
menos preparados (mas não menos inteligentes). Basta simular esse tipo de
seleção com base nos resultados dos vestibulares passados para verificar quão
diferentes serão esses dois grupos.
Qual será o efeito dessa medida sobre a qualidade do ensino ministrado nas
universidades federais? Como o ensino será ministrado nessas novas classes, em
que metade dos alunos será menos preparada que a outra metade? Os professores
adequarão o ensino a essa metade, desestimulando os mais preparados, reduzindo o
nível de toda a universidade? Ou será que o nível das aulas será mantido,
alienando os alunos menos preparados e desencadeando reprovações em massa?
Será que os defensores dessa lei acreditam que os professores das
universidades federais são tão capazes, motivados e tão bem remunerados que
facilmente darão conta desse novo desafio? Ou será que as universidades federais
adotarão o sistema que existia nas pequenas escolas primárias do interior do
País, em que todos os alunos do curso primário eram colocados na mesma sala,
organizados por fileiras. Os de 7 anos numa fileira, os de 8 em outra e assim
por diante, enquanto o professor dividia seu tempo entre as fileiras.
Qualidade ameaçada. O mais provável é que esse aumento na
heterogeneidade diminua a qualidade do ensino nas universidades federais. Só
resta esperar que na esteira dessa nova lei não venha a obrigação da aprovação
automática nas universidades federais ou um novo programa de cotas que garanta
para os alunos egressos dessas universidades 50% das vagas no funcionalismo
público.
Antes de sancionar a nova lei, o governo deveria visitar diversos programas
experimentais financiados pelo setor privado. Muitos desses programas,
ministrando aulas complementares nos finais de semana, conseguem colocar até 80%
de alunos carentes, vindos do ensino público, nas melhores universidades
brasileiras. Isso depois de concorrerem com os melhores alunos do ensino
privado. Vale a pena ver o orgulho estampado na face desses jovens.
Na minha opinião, as cotas colaboram para a piora do ensino público e são um
desrespeito à inteligência e à autoestima dos alunos das escolas públicas.
Precisamos não de cotas, mas de um ensino público melhor.
O ingresso de 50% de alunos do sistema público nas universidades federais
deveria ser uma meta do Ministério da Educação e não mais uma maneira de
diminuir a pressão da sociedade por uma educação de melhor qualidade.
Fonte: O Estadão
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